15 setembro 2008

a clockwork orange [parte 1]

Nota: Achei que ficou prolixo demais e resolvi dividir o texto em duas partes. A segunda parte, que será postada em breve, se limitará aos aspectos técnicos do filme. Bem, pelo menos é a minha intenção.

A tela foi preenchida por um vermelho primário que servia de fundo para as grandes letras brancas que diziam Produced and Directed by Stanley Kubrick. Ouviu-se a voz de Gene Kelly entoando os primeiros versos da canção Singin' in the Rain, servindo um pouco para me anestesiar de tudo que acabara de assistir. Laranja Mecânica havia terminado. Eu abri um sorriso. Sentia-me muito bem e feliz, o que talvez seja um pouco estranho. Afinal, passei um pouco mais de duas horas assistindo a covardes atos violentos, um governo egoísta e manipulador, um método de reinserção social para [ex-]criminosos unicamente desumano [unicamente?], um sistema familiar falido, um quadro cruel do futuro que nunca me pareceu tão atual e fui bombardeado por questões e sensações que questionam minha moral.

Se a genialidade da direção de Kubrick sempre esteve evidente a cada conferida de Laranja Mecânica, após concluir a leitura do livro de Anthony Burgess, tal genialidade ganha nova dimensão, uma vez que a adaptação que lhe confere transforma uma leitura ora chata e desinteressante numa das maiores obras-primas do cinema - a qual, assistindo pela terceira vez, me pareceu ainda melhor. E é por isso, meus irmãos, que quando os créditos finais surgiram na tela, eu fui tomado por uma sensação muito horrorshow [não resisti].

Contendo 197 páginas [a edição mais recente], só me senti realmente interessado pelo livro por volta da centésima. - ou seja, se não fosse por conta do filme, talvez parasse no meio do caminho. O dialeto nadsat criado por Burgess [por sinal, horrorshow significa excelente] cria um estranhamento ao nos inserirmos na narração de Alex, é verdade, mas a mesma, junto com o estilo peculiar de narrar, às vezes me incomodava deveras e só me distanciava do personagem. Kubrick cortou alguns trechos, modificou outros e manteve, como não poderia ser diferente, toda a premissa original criada por Burgess.

Alex é mau por natureza – e por opção. Ele tem acesso à escola, pais que, pelo menos inicialmente, se mostram preocupados com suas atitudes e não é desprovido de cultura, mas gosta de sair pelas ruas sujas de um futuro caótico para roubar, espancar a quem der na telha, invadir residências e violentar seus moradores, estuprar mulheres e lutar contra gangues rivais. Alex personificava o estado vil daquele tempo. Mas o cerne é: nosso humilde narrador fazia tudo isso por puro prazer e satisfação pessoal - o que, tenho que confessar, deixa-o extremamente fascinante.

Ele violenta um casal em seu lar enquanto canta alegremente Singin’ in the Rain e eu me pego rindo. Eu adoro quando ele invade a casa uma mulher e a ataca com uma escultura em forma de pênis. Acho justo quando ele bate em seus drugues e faz um corte na mão de um deles apenas para mostrar liderança. Não me importo quando ele chuta deliberadamente um mendigo deitado na rua, bêbado, sem nada ter feito. Kubrick transformou Alex num paradoxo, um jovem sem freios para o mal mas que me instiga desde o primeiro take. Como eu poderia me divertir com uma cena contendo a violência gratuita que me amedronta cotidianamente? Por que eu compraria os desejos de um criminoso repulsivo que ri naturalmente enquanto agride suas vítimas? Acredito que não deveria achar graça, mas Laranja Mecânica me deturpa.

O segundo ato se inicia com a prisão de Alex, dando início à principal discussão da obra. A superlotação nas cadeias e suas deficiências [algo que visualmente não é perceptível, sinto dizer, e caso essas informações não fossem ditas pelos personagens, eu teria tido uma boa impressão do sistema carcerário] e nosso narrador já está lá há dois anos. Ao descobrir sobre uma nova técnica ainda em fase de experimentação chamada Ludovico, a qual o governo criara para acabar com criminalidade - e ganhar a empatia do povo para a próxima eleição -, Alex se submete ao tratamento, já que assim conseguiria a esperada “liberdade”.

E liberdade é exatamente o que não consegue ao fim do tratamento. O governo transformou Alex numa laranja mecânica, com inclinação total para o bem, chegando a nem ser capaz de se defender – algo que no estado em que o mundo se encontrava, era primordial. Mas mais do que primordial, é o direito que temos como humanos, direito de escolha, seja lá a que tendência for. Ele não poderia mais sair à noite e fazer o que tanto gostava. Nem ao menos se divertir à maneira que preferia. Ele virou um robô e a partir deste instante é colocado na posição de vítima do Estado. Logo, não somos a favor disso e lutaremos pelo seu direito de fazer o mal, right-right?

É aí que me pergunto até que ponto essa é uma política totalmente desumana. Fiquei imaginando os criminosos de hoje sendo submetidos à técnica Ludovico. E digo sem remorso: eu adoraria o resultado. Desta forma, vale mais lutar pela moral de qualquer ser humano ou usufruir de um tratamento pouco [ou nada] ético para conquistar uma sociedade segura?

[A partir daqui comento o final do filme. Garanto que caso ainda não o tenha visto e queira continuar, em nada irá diminuir o impacto da obra, mas caso sua aversão à spoilers seja gritante, é melhor manter distância] Já para o governo – e para quem quer alcançá-lo -, o que realmente importa é seus interessantes. Assim, o terceiro ato é tão magistral quanto o primeiro [meu preferido] e chega a ser assustador por sua verossimilhança. Após sobreviver a sua tentativa de suicídio, Alex agora está no hospital, onde recebe a visita do Ministro do Interior, o mesmo que o atestou apto para o tratamento Ludovico. Se antes nosso narrador era tratado como cobaia e não havia recebido a mínima preocupação do Estado, agora o Ministro o chama de “amigo” e dá comida em sua boca [isso não está no livro, vale dizer], atitude a qual representa a total disponibilidade do governo em servi-lo e agradá-lo, para assim recuperar sua credibilidade com a sociedade após todos os inoportunos ocorridos a Alex. Ele entende a mensagem e quando questiona se a população compactuaria com a mudança ideológica do governo, o Ministro não hesita em dizer: “A opinião pública está sempre mudando”. E o filme é de 1971.

Caso alguém pergunte sobre o desfecho, a verdade é que: "Termina com um final feliz. Ele está curado e volta a ser mau. Ao se imaginar estuprando uma mulher, a alta sociedade aplaude. Era essa a sua vontade, afinal".

5 comentários:

Unknown disse...

Uau!
Esse é um dos livros/filmes que tenho que ler/ver para a segunda prova de Literatura Inglesa II.
O filme ainda não vi, acabei de conhecer a hitoria por vc, e tenho que admitir uma coisa: tenho certeza que nem minha professora que já leu esse livros milhões de vezes falaria dele assim.
Confesso que não estava, mas agora estou muito curiosa por ver o filme [já no meu HD há uns 2 meses... rs].

Ahhh... nada como o realismo. rs

[Aline do Socratica (ando sem tmpo ate pra logar o blogger... rs)]

Anônimo disse...

Cê escreve tããão bem Jeff...

Pena q desconheço o assunto
=/

Mas deu mó vontade de ver o filme...
Principalmente depois de uma aula de psicologia que tive hj... falamos de 'sublimação' e associei a algumas coisas que vc falou no post... queria saber se cabe, ou se foi mera 'viagem' de minha mente-demente

;)

Pedro Henrique Gomes disse...

Mais uma obra-prima dentre as tantas do legado de Kubrick. Depois de "2001 - Uma Odisséia no Espaço", este é meu predileto dele.

Abraço!!

A Vilã disse...

Após ver Laranja senti-me extasiada. E um pouco confusa, pois gostei das demonstrações de violência de Alex e irritada com o tratamento dado a ele no programa.

Confesso que torcia por ele. Queria que sua natureza não fosse cortada de maneira tão brutal (mais brutal do que ele próprio havia sido).
Não gostei do tratamento "desumano" dado a ele e o descaso dos seus pais.

Mas como no fim (quase) tudo dá certo, ele volta a ser o velho druguinho de sempre. E sua cena final é de deixar um sorriso de orelha a orelha.

Também gostei do livro, mas confesso que gostei mais do filme. =x

Esperando a parte 2, right-right?

Eduardo disse...

Esse filme é muito perfeito... Estou com vontade de comprar o livro, depois do que você disse fiquei meio desanimado mas a vontade pela história é maior e vou tentar ler. Texto muito bom! [vou ler a segunda parte agora... yeaah!]